Lídia Hernandes tem 71 anos é aposentada e nas noites de sábado,
enquanto muitos de seus conhecidos estão se preparando para o tão
esperado “sábado à noite”, sinônimo de festa e diversão, ela
sai de casa, sobe a rua Paracatu, a pé mesmo, dobra a esquina
entrando na rua Ipanema, onde se encontra a casa União Espírita em
Busca da Paz, um centro espírita que existe desde 1975 no Parque
Erasmo Assunção, em Santo André, para mais um dia de “trabalho”
(se referindo a oração praticada pelos médiuns), como ela mesma se
refere.
Com a calma de uma samaritana ela é uma das mais velhas médiuns a
trabalhar na casa. Está lá há 28 anos e após a aposentadoria como
professora da rede pública de ensino fundamental, já vê o centro
como sua segunda casa – “Um dos meus filhos, que mora comigo, ele
fala “mãe, pô, daqui a pouco você está morando lá dentro do
centro” e eu só não moro por que não tem chuveiro” ela conta
enquanto estampa um largo sorriso no rosto.
O espiritismo apareceu em sua vida após a morte do marido. Morava
nessa época em Santos, e era frequentadora da igreja católica.
Mudou-se para Santo André, passou em um concurso público para
trabalhar em uma escola do bairro onde mora e descobriu naquele
centro espírita uma calma, uma paz interior que nunca havia sentido
nas igrejas católicas que tentou frequentar na nova cidade.
Lídia não sabe precisar quando sentiu pela primeira vez a
manifestação de mediunidade em sua vida e explica que hoje é uma
coisa natural – “a gente sente aquele chamamento, ninguém chega
em você e fala vai, não, a gente tem aquela vontade de servir, foi
como aconteceu comigo, eu sentia vontade de estar aqui dentro. Entrei
um dia e nunca mais sai”.
Assim como os escritos de Allan Kardec, propagador da doutrina
espírita, Lídia explica que qualquer pessoa tem o poder de
manifestar a mediunidade “... até mesmo você. A mediunidade,
todos nós temos, nascemos com ela, ela é inerente a nós. ”,
sendo manifestada através da psicofonia (quando um espírito se
comunica através da voz do médium), psicografia, vidência,
audiência, intuição, cura, etc. Lídia tem o ‘dom’ da
mediunidade ligada à cura. Já exerceu por diversas vezes auxílio
em tratamentos com doenças “... igual o senhor hoje que passou por
aqui e tinha um problema renal, falou que há seis anos passou aqui e
melhorou do mesmo problema. Ele tinha se afastado da casa, mas o
problema voltou, então veio buscar ajuda de novo”.
Ela se refere ao ‘passe’ como energia emanada pelas pontas dos
dedos através de oração. Diz então que qualquer um possui tal
energia e pode emana-la para outra pessoa também, só precisa
aprender a controlar tal habilidade. “Enquanto eu estou passando o
passe para você, eu ‘to’ orando, pedindo para que você seja um
benfeitor, que utilize dessas energias com amor, que você siga um
bom caminho” ela explica enquanto demonstra com as mãos a posição
do ‘passe’.
Os fiéis que seguem uma religião o fazem a procura de paz de
espírito ou muitas vezes por problemas pessoais. Os casos mais
comuns que levam pessoas ao centro são de doenças e perda de
emprego. Lídia já viu de tudo, pois em quase 30 anos se dedicando à
casa, não é de se estranhar que tenha inúmeras memórias a qual
recordar.
Lembra então de uma garota, uma jovem de apenas 19 anos que chegou
ao centro por intermédio da mãe, pois havia sido diagnosticada com
HIV. “Chegou muito debilitada, por que ela se entregou para a
doença. Foi fazendo um tratamento após outro e hoje ela está aqui
e está nos ajudando na casa. Hoje ela está com uns 26 anos. Claro
que a doença em si não foi curada, mas ela consegue conviver
tranquilamente”. Pelo seu sorriso e os olhos marejados, percebe-se
um apreço especial pela garota.
Antes que eu pudesse direcionar para uma próxima pergunta, num
impulso para falar sobre um caso em particular, Lídia então fala de
sua própria neta, também vítima de HIV. Não era sua neta de
sangue, sua filha havia adotado a bebê no dia de seu parto, pois a
mãe acabara falecendo no momento em que dava à luz, vitimada pela
HIV. A bebê então também havia sido diagnosticada com HIV após 3
meses de vida. Lídia atribui os 19 anos em que a jovem Letícia pôde
permanecer na terra à força e trabalho constante ligados ao
espiritismo – “quando chegou no dia das mães ela partiu. Você
vê o sofrimento que a gente passa, mas tinha que ser assim” conta.
Não é fácil passar por momentos de tensão como este sem estar
ligado à fé. A força inexplicável para muitos e inconfundível
para outros tantos é o alicerce fundamental na continuidade de uma
vida difícil. O escape para momentos torturantes tem sido a fé.
Lídia teve de encarar a morte de entes queridos algumas vezes, mas
isso para ela é um processo natural da vida. Ela declara que antes
de entender os estudos do espiritismo, tratava o processo de vida e
morte de outra maneira, de maneira que seu coração se machucava
demais com as perdas. A paz que encontrou nos ensinamentos da
doutrina espírita, lhe fizeram lidar melhor com a morte. Fizeram a
paz do espírito preencher o vazio da perda, transformando o
sofrimento, apenas em saudade.
Não apenas a religião, mas a casa permite para os médiuns que se
dedicam 100% ao local, um modo de vida. Com trabalhos voluntários à
cada semana, Lídia diz participar de tudo avidamente, desde os
“trabalhos” aos sábados à noite, até cuidar do jardim, ou
descascar as batatas para as sopas que são distribuídas para os
moradores de rua – “se você me perguntar quem limpa esse chão,
vou te falar ‘eu’. Quem é que cuida do jardim, ‘eu’. Quem
cuida dos médiuns, ‘eu’. Então eu sou assim, como se fosse uma
mantenedora da casa, eu me sinto bem fazendo isso (...) e é isso,
somos uma grande família. É o nosso modo de vida” completa cheia
de entusiasmo, agradecendo pela presença com um abraço caloroso,
como o de uma pessoa conhecida há anos.
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