quinta-feira, 19 de maio de 2016

O dia em que a esperança acabou

Domingo, dia das manifestações contra a corrupção no Brasil, lá está Ana Paula. Uma adolescente
de 19 anos, negra, vinda da zona leste de São paulo, atravessou mais de 20 quilômetros que ligam
Itaquera a Avenida Paulista, para participar da megalomania que se apresentava ao público em
horário nobre na TV. Ela saiu de casa, onde deixava as condições absurdas que vive, para defender
seu país. Livrar, pela força de milhões de pessoas espalhadas pelas ruas do Brasil, o país em que
vive, das mãos de sanguessugas que só querem prejudicar seu povo. Ela foi convicta de algumas
ideias, outras a patroa alimentou durante a semana. Chega dessa pouca-vergonha, era o que
esbravejava para si mesmo.

Na sua casa faltava luz a noite, água nos finais de semana, faltava comida na geladeira, faltava um
pai na família, faltava um futuro no horizonte. Achou então uma oportunidade de se fazer ouvida.
Desceu o morro da favela pra subir no alto da Paulista. Encontrara muitas camisas verde e
amarelas no metrô. Até sorriu ao lembrar que a patroa, na sexta-feira, havia pedido para explicar
como se fazia pra chegar na Paulista de metrô.

Quando desceu, viu um mar de gente. Gente branca. Gente de olhos claros. Gente velha. Gente
cheia de botox. A música que em uníssono era entoada pela multidão, era a mesma da Copa,
aquela do “brasileiro com muito orgulho”, que já não aguentava mais ouvir. Trios elétricos, que só
havia visto nos carnavais da Vila do Sapo, levavam Alexandre Frota, aquele mesmo, que incitava
palavras de ordem contra a presidente. Não fosse um “vadia” aqui ou “vaca” acolá, ela teria
gostado de ver um famoso de perto pela primeira vez.

Um outro trio elétrico trazia militares pedindo intervenção militar e entre cartazes de “Fora PT” e
“Fora Dilma” um, que pedia a volta da ditadura militar, chamou-lhe atenção. Ela não era nascida,
mas a mãe conta que seu avô, da Bahia, de onde a família veio, morreu na ditadura, acusado de
dar refúgio a cubanos comunistas em suas terras. A mãe nunca viu cubano nenhum na vida.

Ana Paula não assemelhava a camisa da CBF, usada ali por muitos, à corrupção. Para ela era só
uma camisa de time. Mas ficou encucada quando percebeu um rapaz com camisa do Banco do
Brasil. Se perguntou se aquilo não seria contraditório, já que os bancos são fontes inesgotáveis de
corrupção. Até presidente preso já teve. Mais uma vez aquilo lhe pareceu estranho, irônico.
Nunca havia ido a uma manifestação antes. O mais próximo que chegou de uma foi através da TV
e do testemunho de amigos que estiveram naquele junho de 2013, que chegaram em casa
contando como a polícia havia descido o cacete neles e os perseguido com gás de pimenta. Por
conta disso, teve até um pouco de receio em sair de casa e quase desistiu. Mas ao ver
manifestantes posando para “selfies”, todos sorridentes, com policiais, e as crianças nos seus
cavalos, o medo de levar tiro de bala de borracha se tornou vergonha alheia em ver aquela cena.
Pensou na hora, que se fosse ela a tirar uma foto com os “gambés”, não conseguiria subir o morro
de volta pra casa de jeito nenhum.

Os dutos de ventilação da estação Trianom-Masp de metrô, serviam como efeitos especiais para
cabelos e bandeiras tremularem para mais “selfies”. Era um point obrigatório para quem
alcançasse aquela distância percorrida. Eram muitos biquinhos e sorrisos de mulheres que não
conseguiam esticar a pele do rosto sem levantar o dedão do pé. Expressões sintéticas, artificiais.

Continuou a marchar do Paraíso até a Consolação e deu graças a Deus por estar sozinha. Não
aguentaria a piada do casamento mais uma vez, não naquele dia. Ela queria chegar ao Pato, mas
não pôde. Não foi capaz. Se sentiu cada vez mais desconfortável vendo toda aquela bagunça. Uma
micareta na Freguesia do Ó era mais fácil de suportar do que aquilo. Não aguentava mais
“Bolsomito” pra lá, “Casa comigo Moro” pra cá. Aquela gente. Aquela causa. Aquele lugar. Não era
dela. Não era pra ela.

Deslocada, como sempre se sentiu ao deixar a Zona Leste de São Paulo, Ana Paula volta para casa
desolada. Sem perspectiva de melhora. Sem que aquelas pessoas entendessem os motivos que os
levaram aonde estão. Ana Paula saiu de casa com uma perspectiva, voltou com uma desilusão.
Onde havia esperanças, há constrangimento. Não encontrou a patroa na muvuca e agradeceu por
aquilo não ter acontecido. Não queria ser reconhecida naquele meio.

Ela imaginou que por um instante, os brasileiros se uniriam para lutar por uma causa em comum,
mas não foi isso que viu. O que viu foram apenas 14 negros (e tinha quase certeza de que duas
eram empregadas acompanhando suas patroas), em meio a 1,4 milhão de pessoas, durante a uma
hora e meia que ficou por ali. O que viu foi sua própria existência ruir de uma só vez. Ana Paula
não volta pra casa. Ela desaparece no meio da multidão, antes mesmo de entrar no metrô. Ana
Paula, de sobrenome Esperança, desapareceu em milhares de pessoas naquele dia, que
imaginaram que aquele domingo guardava um dia histórico, de mudanças. A única mudança vista,
talvez, foi a de Ana Paula, que agora é Natasha.