sexta-feira, 10 de junho de 2016

A fé que transforma e simplifica a maneira de viver em comunidade

 Lídia Hernandes tem 71 anos é aposentada e nas noites de sábado, enquanto muitos de seus conhecidos estão se preparando para o tão esperado “sábado à noite”, sinônimo de festa e diversão, ela sai de casa, sobe a rua Paracatu, a pé mesmo, dobra a esquina entrando na rua Ipanema, onde se encontra a casa União Espírita em Busca da Paz, um centro espírita que existe desde 1975 no Parque Erasmo Assunção, em Santo André, para mais um dia de “trabalho” (se referindo a oração praticada pelos médiuns), como ela mesma se refere.
Com a calma de uma samaritana ela é uma das mais velhas médiuns a trabalhar na casa. Está lá há 28 anos e após a aposentadoria como professora da rede pública de ensino fundamental, já vê o centro como sua segunda casa – “Um dos meus filhos, que mora comigo, ele fala “mãe, pô, daqui a pouco você está morando lá dentro do centro” e eu só não moro por que não tem chuveiro” ela conta enquanto estampa um largo sorriso no rosto.
O espiritismo apareceu em sua vida após a morte do marido. Morava nessa época em Santos, e era frequentadora da igreja católica. Mudou-se para Santo André, passou em um concurso público para trabalhar em uma escola do bairro onde mora e descobriu naquele centro espírita uma calma, uma paz interior que nunca havia sentido nas igrejas católicas que tentou frequentar na nova cidade.
Lídia não sabe precisar quando sentiu pela primeira vez a manifestação de mediunidade em sua vida e explica que hoje é uma coisa natural – “a gente sente aquele chamamento, ninguém chega em você e fala vai, não, a gente tem aquela vontade de servir, foi como aconteceu comigo, eu sentia vontade de estar aqui dentro. Entrei um dia e nunca mais sai”.
Assim como os escritos de Allan Kardec, propagador da doutrina espírita, Lídia explica que qualquer pessoa tem o poder de manifestar a mediunidade “... até mesmo você. A mediunidade, todos nós temos, nascemos com ela, ela é inerente a nós. ”, sendo manifestada através da psicofonia (quando um espírito se comunica através da voz do médium), psicografia, vidência, audiência, intuição, cura, etc. Lídia tem o ‘dom’ da mediunidade ligada à cura. Já exerceu por diversas vezes auxílio em tratamentos com doenças “... igual o senhor hoje que passou por aqui e tinha um problema renal, falou que há seis anos passou aqui e melhorou do mesmo problema. Ele tinha se afastado da casa, mas o problema voltou, então veio buscar ajuda de novo”.
Ela se refere ao ‘passe’ como energia emanada pelas pontas dos dedos através de oração. Diz então que qualquer um possui tal energia e pode emana-la para outra pessoa também, só precisa aprender a controlar tal habilidade. “Enquanto eu estou passando o passe para você, eu ‘to’ orando, pedindo para que você seja um benfeitor, que utilize dessas energias com amor, que você siga um bom caminho” ela explica enquanto demonstra com as mãos a posição do ‘passe’.
Os fiéis que seguem uma religião o fazem a procura de paz de espírito ou muitas vezes por problemas pessoais. Os casos mais comuns que levam pessoas ao centro são de doenças e perda de emprego. Lídia já viu de tudo, pois em quase 30 anos se dedicando à casa, não é de se estranhar que tenha inúmeras memórias a qual recordar.
Lembra então de uma garota, uma jovem de apenas 19 anos que chegou ao centro por intermédio da mãe, pois havia sido diagnosticada com HIV. “Chegou muito debilitada, por que ela se entregou para a doença. Foi fazendo um tratamento após outro e hoje ela está aqui e está nos ajudando na casa. Hoje ela está com uns 26 anos. Claro que a doença em si não foi curada, mas ela consegue conviver tranquilamente”. Pelo seu sorriso e os olhos marejados, percebe-se um apreço especial pela garota.
Antes que eu pudesse direcionar para uma próxima pergunta, num impulso para falar sobre um caso em particular, Lídia então fala de sua própria neta, também vítima de HIV. Não era sua neta de sangue, sua filha havia adotado a bebê no dia de seu parto, pois a mãe acabara falecendo no momento em que dava à luz, vitimada pela HIV. A bebê então também havia sido diagnosticada com HIV após 3 meses de vida. Lídia atribui os 19 anos em que a jovem Letícia pôde permanecer na terra à força e trabalho constante ligados ao espiritismo – “quando chegou no dia das mães ela partiu. Você vê o sofrimento que a gente passa, mas tinha que ser assim” conta.
Não é fácil passar por momentos de tensão como este sem estar ligado à fé. A força inexplicável para muitos e inconfundível para outros tantos é o alicerce fundamental na continuidade de uma vida difícil. O escape para momentos torturantes tem sido a fé.
Lídia teve de encarar a morte de entes queridos algumas vezes, mas isso para ela é um processo natural da vida. Ela declara que antes de entender os estudos do espiritismo, tratava o processo de vida e morte de outra maneira, de maneira que seu coração se machucava demais com as perdas. A paz que encontrou nos ensinamentos da doutrina espírita, lhe fizeram lidar melhor com a morte. Fizeram a paz do espírito preencher o vazio da perda, transformando o sofrimento, apenas em saudade.
Não apenas a religião, mas a casa permite para os médiuns que se dedicam 100% ao local, um modo de vida. Com trabalhos voluntários à cada semana, Lídia diz participar de tudo avidamente, desde os “trabalhos” aos sábados à noite, até cuidar do jardim, ou descascar as batatas para as sopas que são distribuídas para os moradores de rua – “se você me perguntar quem limpa esse chão, vou te falar ‘eu’. Quem é que cuida do jardim, ‘eu’. Quem cuida dos médiuns, ‘eu’. Então eu sou assim, como se fosse uma mantenedora da casa, eu me sinto bem fazendo isso (...) e é isso, somos uma grande família. É o nosso modo de vida” completa cheia de entusiasmo, agradecendo pela presença com um abraço caloroso, como o de uma pessoa conhecida há anos.



‘Sertanejando’ numa noite regrada a bebida, música ruim e dança patética

 Sexta-feira à noite, estou em casa sozinho, minha namorada está à 17km de distância e não existe a menor possibilidade de encontrá-la essa noite. A Netflix não conecta, pois, o último pagamento não foi debitado e não tiveram dó, cortaram mais rápido que o Giba na final Olímpica de Vôlei em 2004. As alternativas são o vídeo game e os filmes baixados no notebook. Mas já fiz isso o dia todo, que minha bunda já tomou o formato do sofá e não aguenta mais permanecer ali, até mesmo ficar em casa não é tão agradável quanto estou acostumado que seja. A morte lenta e dolorosa viria com alguns episódios de The Big Bang Theory, para dar uma risadinha e deixar o cérebro em ‘modo avião’ até que pegasse no sono.
Eis que uma mensagem no celular aparece, daquelas que promoters usam no WhatsApp, aparentemente sem pretensão, mas que mudaria o destino, e os padrões daquele dia.
VOCÊ É VIP HOJE, mande os nomes: Sertanejinho. Sucesso nas SEXTAS do Rancho Figueiras, a partir das 21h. Com a dupla Victor & Dodô. Envie sua LISTA VIP para Rafael Exaltados. ”
Algumas hashtags “enfeitavam” o convite, mas me recuso a compartilhar com o leitor tal fato. O que acabara de acontecer era que Rafael Cruz, amigo da época de escritório, me convidava para uma balada sertaneja. Sim o cara que tem asco só de pensar nos nomes combinando dessas duplas sertanejas, foi convidado para uma balada do gênero. “Hoje vamos na faixa, o Gordo (Rafael Máximo) arranjou os Vips já que ‘trampa’ lá, só precisamos chegar até 23h30 para entrar” falava na sua tentativa de me fazer aceitar o convite. “Vamos, ‘se pá’ ele arranja bebida também” insistia. E encurralado por mais mensagens com pedidos, não vejo outra alternativa que não seja aceitar após ele dizer “você não tinha que fazer matéria sobre algo que não curtia? Então não tem porque dizer não” insinuava, ironicamente. Obrigado Nádia.
Por volta das 23h saio de casa em direção à rua mais badalada de Santo André, a nossa Augusta do ABC. Tomada por barzinhos, baladas, botecos, carros com capô levantado e som no talo, homens e mulheres recém-saídos de academias exibem-se na rua mais movimentada da madrugada para uma noite de diversão regrada a bebidas e música ruim. Essa é a rua das Figueiras.
O Rancho das Figueiras é pequeno, não cabem mais que 500 pessoas sem que local não pareça a estação da Sé às 7h da manhã. O público é jovem, formado por sua maioria de homens. Por ter chegado cedo, aparentemente a sobriedade ainda tomava conta do local, o que fazia a pista de dança um cemitério de passos coreografados, onde nada acontecia. O palco ainda estava no processo de montagem dos instrumentos e nas TV’s que deveriam passar os clipes das músicas que tocavam, passava o Globo Repórter.
Como fui o primeiro a chegar fiquei encostado numa pilastra trocando mensagens no celular enquanto observava o comportamento daquele pessoal. Percebia que homens e mulheres ainda estavam distantes uns dos outros, já que ainda não havia álcool suficiente em seus corpos para que a ‘ousadia e alegria’ contaminassem suas ações. Parecia claro, entretanto, o que a maioria deles procuravam. Certamente pelos olhares lançados a cada mulher que passasse ao lado, era fácil identificar seus motivos de ali estar.
Meu amigo chegou, trazendo outros amigos seus, vindos da faculdade. “Esse são Renato, Daniele, Vitória e Rafaela. Vamos continuar a despedida do Renato, que vai para a Austrália” disse animado, possivelmente por causa de algumas doses que já havia bebido. E no mesmo momento surge o “anfitrião” de nossa festa, Rafael Máximo, que era promoter do lugar, arranjou nossas entradas, conseguiu uma mesa, com baldes de vodca, energético e cerveja a vontade. Não sou de beber, mas não existe nada mais irritante do que ficar sóbrio em um lugar onde todos ao seu redor estão bêbados. Então não tive muita escolha.
É interessante como já ouvi falar muito sobre como o gosto musical influencia no modo de vida. Ouvi uma vez a Luiza Possi (quem?!) dizer que “respeitava demais os roqueiros, pois não apenas gostam do rock, mas encontram na música um estilo de vida”. Concordo em partes, principalmente se lembrar que não são apenas roqueiros que levam um estilo de vida voltado ao que ouvem. Ou você olha para os vendedores de brincos e pulseiras artesanais nas ruas, com ‘dreads’ no cabelo, camisa da Jamaica e diz “esse aí ouve um Só Pra Contrariar”.
Coisa que não consigo identificar para quem ouve essas músicas populares e quem se diz “eclético” que escutam de Janis Joplin à Jorge & Matheus. “Não acho que é um estilo de vida baseado nos gostos musicais. O sertanejo já não é mais música de violão, chapéu e fivela. Hoje é algo mais pop. Hoje é música para curtir e dançar” disse Daniele sobre o assunto.
Renato lembrou “mas sair para dançar e curtir não é modo de vida também? Eu acho que é sim. Dá uma identidade diferente para quem gosta. Acho que é mais por quê quem ouve uma coisa só, fica caracterizado. Quem ouve mais coisa, parece mais ‘normal’, mas ainda assim, é um estilo”. É bem verdade. Não dá para descaracterizar. Dá para nivelar em escalas diferentes, talvez. Mas todos ainda são conduzidos pelas músicas.
A noite continuava a desenrolar mais histórias e mais risadas, mas agora com o show tendo início. Victor & Dodô são uma dupla cover, que cantam sucessos de outras duplas. O público se anima, a pista de dança toma forma, os pares vão se alterando entre uma melodia e outra. Minhas companhias estavam mais preocupadas em dançar, mas paravam para responder algumas perguntas que o “amigo chato do Rafael”, como certamente serei lembrado, fazia em horas inoportunas.
“Dançar, é tudo o que eu procuro hoje. O som é perfeito para isso. Não tenho nenhuma intenção de pegar ninguém, não hoje. Mas se aparecer também e for uma boa, por que não? ”, conta Vitória, já meio alterada. “Já me aconteceu de tudo em balada. Mas hoje eu trabalho em uma, primeiro por que estou solteiro, segundo por que tem balada todo final de semana e terceiro por que gente bonita e amigos para dançar, beber e comemorar, é a melhor coisa do mundo”, aponta Rafael Máximo, já trazendo a terceira garrafa de vodca para a mesa.

Tenho completa aversão à música sertaneja. Não consigo gostar das letras rasas, melodias pobres e “refrãos chiclete” monossilábicos. Mas ver aquele pessoal dançando, bebendo, se beijando, curtindo e se divertindo como se não houvesse problemas na vida, foi interessante ao menos para entender, sob suas perspectivas, como é a noite dentro de uma balada sertaneja. Não posso negar que ficar bêbado me ajudou muito a não ter ido embora na primeira meia hora. A noite foi divertida e Rafael, o Cruz, jura que puxei uma das meninas para dançar enquanto tocavam Falamansa. Eu nego enquanto estiver vivo, por mais que a cena tenha sido engraçada.

Uma avenida, três cãezinhos e uma mesma história

A Avenida do Estado é uma das maiores vias do estado de São Paulo. Seguindo o rio que a acompanha, corta quatro cidades, nascendo em São Matheus, atravessando Santo André e São Caetano, até desaguar em São Paulo. Na via que registra movimento de mais de 1 milhão de carros por dia, mora Fernando Nogueira (48) sua esposa, Sandra Sakihara (49) e suas duas filhas, Suellen (26) e Bianca (21). Ele é frentista em um posto de gasolina à frente de sua casa, e está acostumado com o barulho e o tráfego de carros dia após dia.

Ele tem uma história incomum com a tal avenida. Não bastando apenas morar e trabalhar nela, recebeu três ‘presentes’ da mesma. Foram três vezes que sua indignação com a brutalidade do “bicho homem” lhe trouxe três fontes de carinho. Foram três vezes que criaturas sofridas, sem esperanças e fadadas a morrerem de fome perambulando as ruas da cidade, viraram membros da família Nogueira.

Em 2009 numa noite de bastante chuva, Fernando trabalhava quando percebeu um carro parado na avenida. As janelas se abriram e um saco preto foi lançado em direção ao rio. Assim que o objeto atinge o chão, o carro acelera e abandona o local. Fernando corre para averiguar o que era. O saco se mexia e ao abri-lo, se deparou com uma cachorrinha. Velhinha e muito debilitada, com sinais de maus tratos, ele a tirou do chão e levou para casa.

“Minha preocupação era de que ela estivesse muito machucada, como já era tarde, tentei deixá-la confortável em casa para no dia seguinte levá-la na veterinária aqui do bairro” conta Fernando. De manhã conseguiu levar a cachorrinha, e após os exames, a médica disse que ela ficaria bem. Ela tinha uma idade bem avançada e estava bem debilitada. A veterinária disse que não poderia ficar com ela, e o abrigo para cães do bairro também já estava lotado. Quando o próprio não sabia se poderia fazer muito pela cachorrinha, ele lembra exatamente das palavras da doutora “ela me disse que a cachorrinha havia sofrido bastante, e que ela não ia ter muito tempo de vida. Mas o pouco que tivesse com a gente, poderia valer mais do que ela já tinha vivido até ali. Essas palavras mexeram comigo (…) Eu não poderia abandonar a cachorrinha, então conversei com a minha família, que prontamente aceitou ficar com ela” lembra Fernando. Ele e sua família decidiram cuidar da cachorrinha, que agora se chamaria Nana.

Como um dejavu, o destino tratou de trabalhar mais duas vezes em continuações da mesma história. Uma delas com requintes de crueldade. Aconteceu no começo de 2012 mas dessa vez o carro estava em alta velocidade e atirou um cachorro pra fora. Ao cair, o animal levantou-se e correu atrás do carro dos donos. Fernando estava prestes a sair do trabalho, e ao ver a cena, correu para pegar sua bicicleta e seguir o animal, que quase havia sido atropelado pelos outros carros da pista. Perdido e desnorteado ele se escondeu no canteiro central. Assustado, foi difícil levá-lo para casa.

Levou o cachorro para a mesma veterinária na manhã seguinte. Foi constatado que uma das patas estava quebrada. Em casa o acordo com sua mulher foi de ficar com o bichinho até que aparecesse alguém que pudesse adotá-lo, já que era muito grande para ficar em casa. Porém, mesmo grande, tratava-se apenas de um filhote. O nome do cachorro seria Dobby, em referência ao personagem da série de filmes ‘Harry Potter’, por conta de suas orelhas grandes. Quanto mais tempo passava naquela casa, mais tempo Fernando ia se apegando ao filhote. “a Nana era bem velhinha, quando levava ela para passear na rua, tinha que ser tudo a passos lentos. Já o Dobby que é filhote, era bem alegre, esperto e travesso. Gosta bastante de correr. Ele fez muito bem para mim, para mudar um pouco o astral da casa. Me lembra muito a história do filme ‘Marley e Eu’. O Dobby é igualzinho o Marley, até luva já comeu” conta Fernando com muito entusiasmo. Dobby foi ficando e se tornando membro da família. O apego de Fernando ao cachorro foi tão grande que sua esposa, Sandra, consentiu em deixar que o animal agora fosse mais um membro da família.

E não muito tempo depois, cerca de 4 meses após a chegada de Dobby, outra vez a história se repetia. Impressiona por ter sido exatamente como das vezes anteriores. Trabalhando, carro parado na avenida, cãozinho atirado pela janela no canteiro próximo ao rio.

Fernando se deparou com um cãozinho de pelos longos, irritado, bastante raivoso e desconfiado. Pegar o animal foi mais difícil dessa vez, tanto que acabou com uma mordida no dedo quando tentou colocar-lhe uma coleira. “Esse cachorrinho era bem bravo. Quando o levei na veterinária, ela me prescreveu uma vacina antirrábica na hora, como cautela pra qualquer problema” recorda. O cãozinho estava com uma pata machucada e com muita dor na região da bexiga e barriga, supostamente por ter sido chutado muitas vezes.

Dessa vez a família não poderia ficar com o cachorro. Nana e Dobby ocupavam muito espaço e tempo na casa da família. Ainda mais um cachorrinho que parecia tão nervoso e difícil de lidar. Mas como ele estava doente e bem debilitado, o jeito foi ficar com o animal até que aparecesse alguém que quisesse levá-lo. Nos primeiros dias chegou a ficar no pequeno quintal que a casa dispõe, mas logo ficou em casa, assim como a Nana. Bianca, uma das filhas, diz “Engraçado que ele era bem desconfiado, nem podia levantar a mão perto dele que ele já achava que iriamos bater. Deve ter apanhado muito. Mas com o passar do tempo, parece que a própria Nana o ajudou a se adaptar”.

O tempo passou e a família, principalmente as duas filhas, criaram um laço maior com o pequeno cachorro, a quem havia colocado o nome de Pompom. A desconfiança do animalzinho não era mais uma coisa constante. Dessa vez seria muito difícil permanecer com ele, ficando com três cachorros em casa. Mas a família não encontrava ninguém que quisesse um cão que não fosse filhote. Suellen lembra de ter dito ao paiPai o Dobby é o seu cachorro, a Nana é da mãe, o Pompom agora é nosso”. “Pra mim foi difícil dizer não a esses argumentos” brinca Fernando. Assim como os outros dois cãezinhos, Pompom então se tornou mais um membro da família.

Eu acho que as pessoas são muito ruins com animais. Aqui na nossa família, todos nós somos contra qualquer tipo de maus tratos com qualquer bicho. E se você olhar para esses cachorros, não vai conseguir entender os motivos que levam alguém maltratar deles” pondera Fernando.


“Eles só precisam de carinho. O Pompom certamente foi abandonado pois era muito revoltado, pode ter mordido alguém já. Mas ele era assim por que era maltratado. Aqui com a gente ele já é outro, muito mais carinhoso (...) O Dobby me parece ter sido abandonado pois era muito grande, muito travesso. As pessoas pegam filhotes achando que eles ficarão pequenos pra sempre até que crescem e não cabem em casa. Aqui ele também não cabe direito, mas nós fazemos de tudo para que se sintam bem” finaliza Fernando com os olhos marejados ao lembrar que em 2016, a Nana já não está mais entre eles. Porém como havia dito a veterinária, ela teve uma vida com os Nogueira que certamente foram os melhores anos da vida dela. Ele quer fazer o mesmo com os outros dois cãezinhos e parece estar no caminho certo para isso.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

O dia em que a esperança acabou

Domingo, dia das manifestações contra a corrupção no Brasil, lá está Ana Paula. Uma adolescente
de 19 anos, negra, vinda da zona leste de São paulo, atravessou mais de 20 quilômetros que ligam
Itaquera a Avenida Paulista, para participar da megalomania que se apresentava ao público em
horário nobre na TV. Ela saiu de casa, onde deixava as condições absurdas que vive, para defender
seu país. Livrar, pela força de milhões de pessoas espalhadas pelas ruas do Brasil, o país em que
vive, das mãos de sanguessugas que só querem prejudicar seu povo. Ela foi convicta de algumas
ideias, outras a patroa alimentou durante a semana. Chega dessa pouca-vergonha, era o que
esbravejava para si mesmo.

Na sua casa faltava luz a noite, água nos finais de semana, faltava comida na geladeira, faltava um
pai na família, faltava um futuro no horizonte. Achou então uma oportunidade de se fazer ouvida.
Desceu o morro da favela pra subir no alto da Paulista. Encontrara muitas camisas verde e
amarelas no metrô. Até sorriu ao lembrar que a patroa, na sexta-feira, havia pedido para explicar
como se fazia pra chegar na Paulista de metrô.

Quando desceu, viu um mar de gente. Gente branca. Gente de olhos claros. Gente velha. Gente
cheia de botox. A música que em uníssono era entoada pela multidão, era a mesma da Copa,
aquela do “brasileiro com muito orgulho”, que já não aguentava mais ouvir. Trios elétricos, que só
havia visto nos carnavais da Vila do Sapo, levavam Alexandre Frota, aquele mesmo, que incitava
palavras de ordem contra a presidente. Não fosse um “vadia” aqui ou “vaca” acolá, ela teria
gostado de ver um famoso de perto pela primeira vez.

Um outro trio elétrico trazia militares pedindo intervenção militar e entre cartazes de “Fora PT” e
“Fora Dilma” um, que pedia a volta da ditadura militar, chamou-lhe atenção. Ela não era nascida,
mas a mãe conta que seu avô, da Bahia, de onde a família veio, morreu na ditadura, acusado de
dar refúgio a cubanos comunistas em suas terras. A mãe nunca viu cubano nenhum na vida.

Ana Paula não assemelhava a camisa da CBF, usada ali por muitos, à corrupção. Para ela era só
uma camisa de time. Mas ficou encucada quando percebeu um rapaz com camisa do Banco do
Brasil. Se perguntou se aquilo não seria contraditório, já que os bancos são fontes inesgotáveis de
corrupção. Até presidente preso já teve. Mais uma vez aquilo lhe pareceu estranho, irônico.
Nunca havia ido a uma manifestação antes. O mais próximo que chegou de uma foi através da TV
e do testemunho de amigos que estiveram naquele junho de 2013, que chegaram em casa
contando como a polícia havia descido o cacete neles e os perseguido com gás de pimenta. Por
conta disso, teve até um pouco de receio em sair de casa e quase desistiu. Mas ao ver
manifestantes posando para “selfies”, todos sorridentes, com policiais, e as crianças nos seus
cavalos, o medo de levar tiro de bala de borracha se tornou vergonha alheia em ver aquela cena.
Pensou na hora, que se fosse ela a tirar uma foto com os “gambés”, não conseguiria subir o morro
de volta pra casa de jeito nenhum.

Os dutos de ventilação da estação Trianom-Masp de metrô, serviam como efeitos especiais para
cabelos e bandeiras tremularem para mais “selfies”. Era um point obrigatório para quem
alcançasse aquela distância percorrida. Eram muitos biquinhos e sorrisos de mulheres que não
conseguiam esticar a pele do rosto sem levantar o dedão do pé. Expressões sintéticas, artificiais.

Continuou a marchar do Paraíso até a Consolação e deu graças a Deus por estar sozinha. Não
aguentaria a piada do casamento mais uma vez, não naquele dia. Ela queria chegar ao Pato, mas
não pôde. Não foi capaz. Se sentiu cada vez mais desconfortável vendo toda aquela bagunça. Uma
micareta na Freguesia do Ó era mais fácil de suportar do que aquilo. Não aguentava mais
“Bolsomito” pra lá, “Casa comigo Moro” pra cá. Aquela gente. Aquela causa. Aquele lugar. Não era
dela. Não era pra ela.

Deslocada, como sempre se sentiu ao deixar a Zona Leste de São Paulo, Ana Paula volta para casa
desolada. Sem perspectiva de melhora. Sem que aquelas pessoas entendessem os motivos que os
levaram aonde estão. Ana Paula saiu de casa com uma perspectiva, voltou com uma desilusão.
Onde havia esperanças, há constrangimento. Não encontrou a patroa na muvuca e agradeceu por
aquilo não ter acontecido. Não queria ser reconhecida naquele meio.

Ela imaginou que por um instante, os brasileiros se uniriam para lutar por uma causa em comum,
mas não foi isso que viu. O que viu foram apenas 14 negros (e tinha quase certeza de que duas
eram empregadas acompanhando suas patroas), em meio a 1,4 milhão de pessoas, durante a uma
hora e meia que ficou por ali. O que viu foi sua própria existência ruir de uma só vez. Ana Paula
não volta pra casa. Ela desaparece no meio da multidão, antes mesmo de entrar no metrô. Ana
Paula, de sobrenome Esperança, desapareceu em milhares de pessoas naquele dia, que
imaginaram que aquele domingo guardava um dia histórico, de mudanças. A única mudança vista,
talvez, foi a de Ana Paula, que agora é Natasha.